sábado, 17 de maio de 2008

O apedeuta

Um dia nasceu um apedeuta

mas o que diabo seria uma criatura dessas?

se ele é qual a diferença entre nós?

e se não é, qual a importância disso?

As pessoas lhe apontam e julgam

“Vejam, lá vem o apedeuta” e riem

os velhos balançam a cabeça e resmungam

os jovens analisam em cientificas curiosidades

e as crianças atiram-lhe pedras no seu caminhar

Basta – quantos rótulos

Ele é um apedeuta e ponto!

por qual motivo insistiria ele em entender isso?

por qual razão teria que entender tudo?

A natureza é o que é e nada mais

por isso a chamam natureza

se não fosse a chamaríamos anti-natureza

e a vida seguiria o curso normal da existência

mas Raul já o dizia: todo mundo explica

e a todos impõe uma verdade

e a todos explicam sua verdade

e é uma verdade tão falsa

que filósofos se debruçam e discutem

banqueteiam com Platão amores verdadeiros falsos

e falsos amores verdadeiros – todos inúteis

E quem sofre? O apedeuta

o infeliz alienado, o ignóbil social

o rejeitado que não é como todos nós

que não soube se situar na engrenagem automática do mundo

que não sabe pensar como pensamos

que não sabe agir como agimos

que não se porta como a etiqueta comanda

e não chama as ilustres autoridades como merecem

“E aí seu juiz, tá tudo bem?” ele cumprimenta sorrindo

“Meritíssimo dos peidos cheirosos” lhe responde com altivez

“Heim?” diz ele, enrugando a sobrancelha

e a única culpa que lhe apontam

é a de ser um apedeuta e ter opinião particular

e que não pode dar um passo em falso

que lá vem em debandada a massa intelectual

com logorréias imparciais e embasadas

nas ciências humanas, na religião

ah, as ciências humanas

com um óculos fundo de garrafa e gravata

um lápis cientifico na orelha e sapatos lustrosos

na lógica formalista dos pensamentos superficiais

carrega um carimbão que aprova e desclassifica

ah, a religião

a doutrina dos seres humanos que não sabem

ser seres humanos de verdade

e transferem tudo que tem de bom e ruim

para uma pomba pulguenta e maluca

que queria ser apenas uma pomba e não pode ser

e teve que voar com asas que não eram suas

E o apedeuta? Pobre infeliz

não suportou a pressão, assim o dizem

e se suicidou em um precipício, assim o dizem

e desperdiçou a sua vida, assim o dizem

era um covarde, assim o dizem

e ninguém o compreende de verdade

nem mesmo na autentica motivação da sua morte

nem mesmo no ato consciente do seu salto

o deixam no sossego na profundidade do seu buraco

Então tentam entender o porquê disso

e tentam buscar a razão daquilo

quando encontram se satisfazem e classificam

quando não, rejeitam – e classificam também!

E o apedeuta que só queria viver como queria

com os prazeres efêmeros das coisas

com a simplicidade dos pensamentos pobres

com a tranqüilidade da naturalidade humana

e com a morte digna da existência que viveu

ganhou uma pedra em forma de cruz

e um pedacinho de terra que os parentes tem que pagar impostos

mas a consciência mundial se aquietou

o apedeuta finalmente ocupou seu lugar na vida

na classificação positivista da sociedade

na definição moral de nossa raça

virou estatística.