Um dia nasceu um apedeuta
mas o que diabo seria uma criatura dessas?
se ele é qual a diferença entre nós?
e se não é, qual a importância disso?
As pessoas lhe apontam e julgam
“Vejam, lá vem o apedeuta” e riem
os velhos balançam a cabeça e resmungam
os jovens analisam em cientificas curiosidades
e as crianças atiram-lhe pedras no seu caminhar
Basta – quantos rótulos
Ele é um apedeuta e ponto!
por qual motivo insistiria ele em entender isso?
por qual razão teria que entender tudo?
A natureza é o que é e nada mais
por isso a chamam natureza
se não fosse a chamaríamos anti-natureza
e a vida seguiria o curso normal da existência
mas Raul já o dizia: todo mundo explica
e a todos impõe uma verdade
e a todos explicam sua verdade
e é uma verdade tão falsa
que filósofos se debruçam e discutem
banqueteiam com Platão amores verdadeiros falsos
e falsos amores verdadeiros – todos inúteis
E quem sofre? O apedeuta
o infeliz alienado, o ignóbil social
o rejeitado que não é como todos nós
que não soube se situar na engrenagem automática do mundo
que não sabe pensar como pensamos
que não sabe agir como agimos
que não se porta como a etiqueta comanda
e não chama as ilustres autoridades como merecem
“E aí seu juiz, tá tudo bem?” ele cumprimenta sorrindo
“Meritíssimo dos peidos cheirosos” lhe responde com altivez
“Heim?” diz ele, enrugando a sobrancelha
e a única culpa que lhe apontam
é a de ser um apedeuta e ter opinião particular
e que não pode dar um passo em falso
que lá vem em debandada a massa intelectual
com logorréias imparciais e embasadas
nas ciências humanas, na religião
ah, as ciências humanas
com um óculos fundo de garrafa e gravata
um lápis cientifico na orelha e sapatos lustrosos
na lógica formalista dos pensamentos superficiais
carrega um carimbão que aprova e desclassifica
ah, a religião
a doutrina dos seres humanos que não sabem
ser seres humanos de verdade
e transferem tudo que tem de bom e ruim
para uma pomba pulguenta e maluca
que queria ser apenas uma pomba e não pode ser
e teve que voar com asas que não eram suas
E o apedeuta? Pobre infeliz
não suportou a pressão, assim o dizem
e se suicidou em um precipício, assim o dizem
e desperdiçou a sua vida, assim o dizem
era um covarde, assim o dizem
e ninguém o compreende de verdade
nem mesmo na autentica motivação da sua morte
nem mesmo no ato consciente do seu salto
o deixam no sossego na profundidade do seu buraco
Então tentam entender o porquê disso
e tentam buscar a razão daquilo
quando encontram se satisfazem e classificam
quando não, rejeitam – e classificam também!
E o apedeuta que só queria viver como queria
com os prazeres efêmeros das coisas
com a simplicidade dos pensamentos pobres
com a tranqüilidade da naturalidade humana
e com a morte digna da existência que viveu
ganhou uma pedra em forma de cruz
e um pedacinho de terra que os parentes tem que pagar impostos
mas a consciência mundial se aquietou
o apedeuta finalmente ocupou seu lugar na vida
na classificação positivista da sociedade
na definição moral de nossa raça
virou estatística.